Aquela criança palestina

Os adultos precisam vencer o medo para as crianças colherem a paz.

Fico pensando na criança palestina. Naquele dia ela viu uma bomba destruir o prédio em que morava. Sem entender direito o mundo, seus pais estavam ali, no chão, mortos. Não consigo conhecer o terror que passava pelos seus sentidos, neste mundo que, para ela, nasce com o horror. A sua única realidade é destruição.

Quando ela se entende no mundo? Quando se vê como gente? São com homens empurrando-a de um lado a outro, até um alojamento com muitos iguais a ela. Não dá tempo para aprender a amar. Não existe tempo para absorver o que ocorre. O que existe é sobrevivência em meio a dor.

E na dor eu acredito que existe solidariedade. Mas existe a falta da mãe, a falta do pai, a ausência de referência de um lar. Existe a frieza com a qual se é tratado. Geram-se muitos ressentimentos. E aprende-se a odiar sem saber o porquê.

Eu me lembro daquele menino que imagino ter 4 anos. O tremor pelo seu corpo e os olhos arregalados e parados eram mais chocantes para mim que o machucado em seus braços. Ele sabia medir esse mundo dos homens tão sem pudor, sem piedade e carregado de armas? Esse nosso ser-no-mundo que não respeita infância e mata os filhotes com medo do predador? Produzimos ódio e depois clamamos pela paz.

Muitas vezes olhamos para o reino animal, cujos predadores matam para comer, agem com o impulso na sobrevivência de sua espécie, cometem a violência que é se manter. Olhamos, então, para a nossa racionalidade e a cultuamos nessa sapiência do “homem que sabe”. É quase um erguer as taças e brindar pelo que a evolução fez por nós.

O homo sapiens aprendeu a vestir roupas e a produzir técnicas sofisticadas para viver. Desenvolveu a religião para comunicação com seres sobrenaturais, aprimorou a ciência e chamou isso de civilização. A partir disso, classificou sua própria espécie em superiores e inferiores, dignos e indignos, justificando para escravizar ou matar. Então, celebramos o Natal.

Esse Natal é bem aos moldes europeus, um continente com tantas batalhas, pregação de superioridade racial e extermínio em sua história. É copiar o que ocorre com eles que chamamos no mundo ocidental de modernidade. Aquela guerra atroz que destruiu o lar de muitos ucranianos já está quase esquecida e sequer nos importamos com o que ocorre no Iêmen e nas nações africanas.

Aquela criança palestina só desejava o calor do colo de sua mãe e a segurança oferecida pelo seu pai. Não sabia que estava crescendo em um mundo oprimida por tantos lados. A iemenita também, semelhante aquela ucraniana ou uma sul-sudanesa. Ah! Semelhante também aquela criança israelense com traços históricos e culturais tão parecidos com seu vizinho em Gaza. O mundo dos homens adultos não perdoa os infantes.

Essa nossa condição me lembra o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. A Compadecida vai interceder pelo bispo corrupto, por João Grilo, um pobre sertanejo que encontrou na malandragem a sua sobrevivência, e diz:

É verdade que eles praticaram atos vergonhosos, mas é preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem. A carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles faziam era por medo. Eu conheço isso, porque convivi com os homens: começam com medo, coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É medo”.

Os adultos precisam vencer o medo para as crianças colherem a paz.

Gustavo Montoia é geógrafo e doutor em Planejamento Urbano e Regional pela UNIVAP. É docente dos Colégios Univap e da EE Francisco Feliciano F. da Silva (Verdinho) e pesquisador-colaborador do Laboratório de Estudos das Cidades da Universidade do Vale do Paraíba.

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